Custo da violência no Brasil é de R$ 200 bilhões por ano
 

Publicado em terça-feira, 13 de junho de 2017 às 13:58

 
Segundo o IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o custo da violência no Brasil é de R$ 200 bilhões por ano.
O prejuízo econômico gerado pela violência vai muito além dos gastos com segurança pública. Atinge diretamente também a saúde, o judiciário, o sistema prisional, o orçamente das famílias das vítimas e, diretamente ou indiretamente, a economia como um todo.

Manifesto sobre acontecimentos recentes na Cracolândia (SP) Por Aline Ramos Barbosa e Silvio de Azevedo Soares




Jornalistas Livres: O que aconteceu aqui hoje, você já tinha visto acontecer?

Morador da Cracolândia: Várias vezes eu vejo acontecer...

Jornalistas Livres: Com esta truculência?

Morador da Cracolândia: Corretamente. Agressões... É, meu... se levantar, eles te agridem. Eles soltam borracha em você...

Jornalistas Livres: E o que você sente com tudo isso? Com o Estado te tratando desta forma?

Morador da Cracolândia: Ah... meu... Sabe o que eu sinto? Eu sinto... escorraçado.... tipo assim... um animal... que não é daquela forma de você tratar... aquele animalzinho...



É uma visão de tratar o cliente, de acolher, de tratar, de educar... A melhor assistência possível. Inclusive, a reinserção social [...] Eu venho acompanhando desde o primeiro momento. Eu não entendo que houve uma ação violenta. (David Uip, secretário estadual de saúde de São Paulo).



(Trechos transcrito de vídeo dos Jornalistas Livres)



“Cliente”. A fala do atual secretário estadual de São Paulo deixa bem clara a visão de governo da saúde e demais serviços que deveriam ser garantidos pelo Estado. Clientela marca uma relação clara entre os serviços: alguém que compra determinado produto. Assistimos, ultimamente, uma retomada neoliberal e conservadora da política brasileira, com exemplos em todos os entes federativos. Sobre a capital paulistana, o que assistimos no domingo, dia 21 de maio de 2017, foi – para-além do sucateamento da saúde, prevista pelos atuais cortes de verba na pasta – uma militarização da intervenção. Militarização do social. Voltamos – ou ainda não saímos – da velha equação “questão social é questão de polícia”.

Esta lógica policialesca, ou seja a expansão da tática militar para demais áreas sociais, tem sido apontada por pesquisadores da área de Segurança Pública. É possível pensar, então, em hipermilitarização (BODIN; BODÊ DE MORAES, 2015) ou militarização do campo social (SOUZA et al, 2017). Tal militarização poderia indicar uma colonização da área social, cujo objetivo seria controlar os pobres, vide, por exemplo, o caso das UPP’s Sociais, no Rio de Janeiro, ligadas ao PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania).

As cenas do território da Cracolândia não são de tratamento de usuários de drogas ou acolhimento de pessoas em situação de rua. As cenas são de guerra. Da “guerra às drogas”. Todavia, guerra pressupõe equilíbrio entre dois lados do combate. Aqui há desequilíbrio. Aqui temos um Estado de dispõe da vida das pessoas. Junto aos destroços de casas, materiais, objetos pessoas, há também vidas destroçadas. Sonhos não-realizados. Trajetórias de recuperação interrompidas abruptamente. Além disso, “droga” é um objeto inanimado. E tem um discurso problemático socialmente:



Embora presente no discurso médico ou jurídico, especialmente no debate de “guerra às drogas”, este termo mais confunde que esclarece, que tenta separar substancias psicoativas lícitas de substâncias psicoativas ilícitas, aprofundando a questão da drogadição enquanto parte também de uma sociedade que se (re)medicaliza e o “uso médico” “como determinante na proibição ou legalidade de psicoativos” (RODRIGUES, 2004:130).



Não há como travar guerra contra objetos. Então, a guerra se estabelece – ou, melhor, o massacre é direcionado – às pessoas que utilizam as drogas ou que traficam as drogas. Tráfico é crime. Uso, não. Os traficantes das ruas são os postos mais baixos de uma empresa ilegal, que não recolhe impostos ou paga direitos trabalhistas. Que recruta jovens e mulheres, que são apreendidos. Há hipercarceramento feminino. Famílias destruídas. Mais jovens nas ruas. Mais presas para o tráfico. Tráfico este que não remunera mais tão bem, mas que é atrativo porque é onde o jovem é reconhecido como alguém. Usuários tem seus direitos violados. Internação compulsória é prevista em casos específicos e tem sido usada indiscriminadamente.

Em artigo publicado na revista Saúde em Debate, Coelho e Oliveira (2014) demonstram como a internação compulsória de usuários de crack é um desserviço para saúde pública, pois ferem a dignidade da pessoa humana, não apresentam grande efeito no tratamento e, ainda, são inconstitucionais. Ainda, segundo o Art. 4o da Lei 10.216 de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental: “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Desta forma, essas ações no território da Cracolândia são, além de desumanas e arbitrárias, inconstitucionais.

Destroços nas ruas. Bombas. Balas de borrachas. Empaderamento de imóveis. A justificativa é de que os imóveis não possuem as condições mínimas de moradia. É feita uma vistoria para saber se há crianças escondidas pelos imóveis. Não querem deixar crianças presas. Acharam todas? Nenhuma ficou emparedada? E os sonhos e vidas que ficaram ali presos? Até quando as “coisas” terão mais importância do que as pessoas? O major fala que os moradores de rua não estão impedidos de circularem pelos locais, mas não podem impedir que outras pessoas circulem. A via pública não é deles. A cidade não é deles. A cidade pertence às pessoas de outra estirpe.

Porque, sem querer fazer previsões, sabemos o que vem depois disso. Gentrificação. Especulação imobiliária. Conselho Tutelar que vai intervir em favor das crianças que a própria ação do Estado colocou nas ruas. Há famílias nas ruas, debaixo de chuva, conversando com os Jornalistas Livres. Há crianças nas ruas. Há grávidas nas ruas. Há vidas nas ruas. E há destruição – física, moral e emocional – de imóveis e de vidas.

Gostaríamos de dizer que este é um fato isolado. Mas, não é. Faz parte de uma série de medidas recentes no Brasil. Impossível não pensar em termos biopolíticos. Junto às mudanças orçamentárias impostas ao SUS, há a tentativa de impor mudanças na Previdência Social. A expectativa de vida aumentou no país nas últimas décadas. Passamos por um mudança demográfica e, consequentemente, epidemiológica. Maior número de pessoas idosas. Mais doenças crônicas. Menos investimentos em saúde coletiva. Mais mortes. Mortes previstas para toda uma população. Morte atual da parte indesejável da população. Isto é inaceitável.

Biopolítica, portanto:

designa a maneira pela qual o poder tender a ser transformar, entre fim do século XVIII e começo do século XIX, afim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica – por meio dos biopoderes locais – se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade, etc., na medida em que elas se tornam preocupações políticas [...] (REVEL, 2005:26-27).



Desta forma, a biopolítica, diz respeito à normalização e, produz, consequentemente, “anormais”, que são indesejáveis. Tais anormais passam a ser pensados de forma biologizante e torna os indivíduos passíveis de alienação:

[...] funcionamento de um poder que não é nem o poder judiciário nem o poder médico, um poder de outro tipo, que eu chamarei, provisoriamente e por enquanto, de poder de normalização. Com o exame, tem-se uma prática que diz respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de normalização e que tende, pouco a pouco, por sua força própria, pelos efeitos de junção que ele proporciona entre o médico e o judiciário, a transformar tanto o poder judiciário, como o poder psiquiátrico, a se constituir como instância de controle do anormal [...] (FOUCAULT, 2010:36).



Vigente ainda a “constituição Cidadã”, ainda em curso as Reformas Sanitária e Manicomial, damos um grande passo atrás na construção da saúde coletiva e da cidadania no país. Higienismo nos moldes do século XIX. Não se trata mais de ampliar direitos, de fazer valer o controle social das políticas públicas, de ter acesso integral e atendimento humanizado em saúde. Trata-se de não perder direitos. Enquanto a lógica da guerra perpassar as políticas públicas do país, será impossível construir políticas públicas que consigam, de fato, promover o cuidado e a emancipação social. E o rolo compressor do Estado vai causar ou devolver à morrer grande parcela da população.

Aline Ramos Barbosa

Socióloga,

Pesquisadora do tema população em situação de rua e saúde

Doutoranda em Ciências Sociais (UNESP-FFC)

[email protected]



Silvio de Azevedo Soares

Sociólogo,

Especialista em Gestão das Redes de Atenção à Saúde

Mestrando em Ciências Sociais (UNESP-FFC)

[email protected]








 
Fonte - Observatório da Segurança Pública