Publicado em terça-feira, 18 de dezembro de 2018 às 15:56 |
|
O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região acaba de publicar seu primeiro acórdão declarando inconstitucionalidade da Reforma Trabalhista. A 6ª Turma do Regional Gaúcho reconheceu ser o dispositivo reformado que autoriza o autor da ação a pagar honorários advocatícios sucumbenciais incompatível com Carta Magna, pois afronta o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), bem como todos os direitos sociais estatuídos no art. 7º da Constituição. Acolheu-se a arguição de inconstitucionalidade da expressão “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa”, constante do § 4º do art. 791-A da CLT, com redação da Lei 13.467 de 13.07.2017.
Trata-se do processo 0020024-05.2018.5.04.0124 (ROPS) e teve julgamento unânime pelo colegiado.
Em voto de relatoria, a Desembargadora Beatriz Renck, ex presidente da Corte, afirmou que impor limites e/ou condições ao benefício da gratuidade da Justiça implicaria reconhecer-se a possibilidade de supressão de via por meio da qual o trabalhador dispõe para buscar a garantia dos seus direitos fundamentais. A magistrada também fundamentou seu voto utilizando as razões expostas pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.766 DF proposta pela Procuradoria-Geral da República.
Seguindo-se a cláusula de reserva de plenário, o julgamento de mérito do recurso foi subrestadado, até que a questão de constitucionalidade seja analisada pelo Tribunal Pleno.
Leia aqui a íntegra do acórdão:
PROCESSO nº 0020024-05.2018.5.04.0124 (ROPS) RECORRENTE: RENATO ROCHA RECORRIDO: A A BERBIGIER CONSTRUCOES – EPP RELATOR: BEATRIZ RENCK EMENTA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. ACORDAM os Magistrados integrantes da 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região: por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso do autor para acolher a arguição de inconstitucionalidade da expressão “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa”, constante do § 4º do art. 791-A da CLT, com redação da Lei 13.467 de 13.07.2017, e, na forma do disposto no art. 143 do Regimento Interno deste Tribunal, assim como dos arts. 948 e 949 do CPC, submeter a apreciação do Tribunal Pleno, restando sobrestado o julgamento dos demais itens do recurso. Intime-se. Porto Alegre, 22 de agosto de 2018 (quarta-feira). RELATÓRIO É o relatório. FUNDAMENTAÇÃO Razões de decidir. RECURSO DO AUTOR. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 791-A, § 4o DA CLT E DO PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA CONSTITUCIONAL E LEGAL. O reclamante se insurge contra a sentença quanto à condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais nos termos do art. 791-A da CLT, ao argumento de que o artigo viola diversos direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988. A propósito, a decisão, no aspecto, foi no seguinte sentido: […]
Considerando os critérios legais estampados nos incisos do §2º do artigo 791-A, arbitro os honorários advocatícios em 10% sobre os valores objeto de condenação (intervalos intraturnos no valor de R$ 768,85) para o procurador do reclamante e de 10% sobre o valor dos pedidos rejeitados (R$ 12.068,68, considerando a soma dos valores indicados nos pedidos “a”, “b”, “c”, “e”, “f”, “g” do rol) para o procurador do reclamado. A reclamada é responsável pelo pagamento dos valores ora fixados a título de honorários para o procurador do autor, ao passo que o reclamante é o responsável pelo pagamento dos valores ora fixados a título de honorários para o procurador da ré. Destaco que, nos termos da parte final do §3º do artigo 791-A, é vedada a compensação entre os honorários de sucumbência recíproca. Ressalto que a aplicação do artigo 791-A, §4º será analisada na fase de execução (momento processual adequado). […] Defende a inconstitucionalidade da decisão por lhe impor responsabilidade pelo pagamento de honorários de sucumbência, ainda que beneficiária da justiça gratuita é, sem sombra de dúvidas inconstitucional, pois fere de morte os mais lídimos preceitos constitucionais e legais. Argumenta que, sendo comprovadamente hipossuficiente, eventual condenação desta ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ou honorários periciais irá lhe tolher de perceber verba trabalhista, cuja natureza é alimentar, o que afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, estatuído no art. 1º, III da Constituição Federal, bem como todos os direitos sociais estatuídos no art. 7º da Magna Carta. Reporta-se aos procedimentos adotados na Justiça Federal, onde a obrigação do pagamento de honorário sucumbenciais, honorários periciais e custas processuais resta inexigível quando a parte litigante demanda sob o pálio da Gratuidade da Justiça, como é o caso dos autos. Assevera, em síntese que a condenação do recorrente ao pagamento de honorários sucumbenciais afronta a literalidade do art. LXXIV, da CF/88 que assim dispõe: LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”. Ademais, enfatiza que a Constituição Federal veda o retrocesso social e as disposições legais supracitadas, oriundas da reforma trabalhista, são, extreme de dúvidas totalmente em prejuízo do trabalhador, algo que é vedado ao legislador infraconstitucional. Diante de todo o contexto apresentado, requer a declaração da inconstitucionalidade dos art. 791-A, §4º, da CLT, especificamente no trecho em que obriga a parte autora ao pagamento aos ônus da sucumbência, ainda que em gozo do benefício da Gratuidade da Justiça, uma vez que tais dispositivos ferem literalmente os princípios basilares da Constituição Federal de 1988 nos termos da fundamentação recursal. A declaração de inconstitucionalidade buscada está fundada, em síntese, no confronto desse dispositivo (inseridos com a promulgação da Lei 13.467/2017) com o direito fundamental à assistência judiciária integral e gratuita garantida no art. 5ª, LXXIV da CRFB, com repercussão
com o direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV da CRFB). É que nos termos do inciso LXXIV do art 5º da CF/88, “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”, assim como, conforme inciso XXXV do mesmo artigo ” a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” O confronto entre as limitações impostas pela texto do lei ordinária e os preceitos constitucionais mostra-se evidente e têm se refletido nas argumentações recursais desde que, à luz da nova legislação, têm sido impostos ônus decorrentes da sucumbência parcial dos demandantes a despeito da concessão da assistência judiciária gratuita, como ocorre no caso concreto. A assistência judiciária gratuita consolidou-se historicamente como garantia de status constitucional e está também amparada em tratado internacional do qual o Brasil é signatário, como expresso no art. 8º do Pacto de São José da Costa Rica. Internamente, na regulamentação da Lei 1.060/1950 e, no âmbito trabalhista, na Lei 5.584/70., assim como, a partir de 2015, nos artigos 98 e seguintes do Novo Código de Processo Civil. A relevância do instituto relaciona-se diretamente com o direito de acesso à Justiça, em especial no Direito do Trabalho em que partes situam-se em planos desiguais do ponto de vista material, corolário essencial do Princípio da Proteção. Impor limites e/ou condições ao benefício da gratuidade da Justiça implicaria reconhecer-se a possibilidade de supressão de via por meio da qual o trabalhador dispõe para buscar a garantia dos seus direitos fundamentais. Nesse sentido, reporto-me aos fundamentos bem lançados no parecer do Ministério Público no processo 0020068-88.2018.5.04.0232 no qual é suscitada a inconstitucionalidade de outros dispositivos correlatos que impõem limitação à concessão plena do benefício da assistência judiciária gratuita: Como já referido, o parágrafo 4º do artigo 791-A da CLT estabelece que haverá condenação em honorários sucumbenciais mesmo quando o vencido seja beneficiário da justiça gratuita. O crédito do advogado ficará, porém, em condição suspensiva de exigibilidade, à semelhança do que ocorre no processo civil (artigo 98, § 3º, do CPC), e somente poderá ser executado se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão, o credor demonstrar que desapareceu a condição de miserabilidade. Ocorre que a norma também prevê que a suspensão de exigibilidade não se aplica quando o beneficiário da gratuidade da justiça tiver obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa. É nesse último aspecto que, no entender do Ministério Público, o dispositivo viola a Constituição Federal, por ser impossível fazer uma leitura compatível do mesmo com os seguintes dispositivos constitucionais: Art. 5º (…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; Art. 7º (…) X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; Ora, se a assistência jurídica prestada pelo Estado deve ser integral, o beneficiário não pode ser condenado a arcar com honorários sucumbenciais, sobretudo através de compensação com parcelas de natureza salarial e , portanto, de caráter alimentar. Tais limitações inegavelmente obstam o direito de acesso à justiça ao cidadão em situação de miserabilidade. Nesse sentido, cabe destacar o ajuizamento da ADI 5766, pela Procuradoria-Geral da República, em que se questiona a constitucionalidade do referido dispositivo. Pronunciando-se na referida ação direta, o Ministro Edson Fachin abriu divergência em relação ao voto do relator, Ministro Luis Roberto Barroso, e posicionou-se pela procedência do pedido, sustentando que os dispositivos questionados mitigaram o direito fundamental à assistência judicial gratuita e o direito fundamental ao acesso à Justiça. (…) E, a propósito do citado voto, subsidio-me dos fundamentos nele adotados pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, durante o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.766 DF proposta pela Procuradoria-Geral da República, que aborda o tema de forma sistemática e exaustiva: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.766 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. ROBERTO BARROSO REQTE.(S) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO INTDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO (….) O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contra dispositivos da Consolidação das Leis Trabalhistas, inseridos pela Lei 13.467/2017, que mitigaram, em situações específicas que enumera, o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV, da CRFB) e, consequentemente, o direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CRFB). Nas razões da presente ação, subscrita pela Procuradoria-Geral da República, argumenta-se que os dispositivos impugnados (art. 790-B, caput e §4º; 791-A, §4º, e 844, §2º, da CLT), todos inseridos pela Lei 13.467/2017, no âmbito da reforma trabalhista, padecem de Cópia ADI 5766 / DF inconstitucionalidade
material, pois impõem restrições inconstitucionais às garantias fundamentais de assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV) e do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV), afrontando também os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e dos valores sociais do trabalho (art. 1º, IV), os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como de redução das desigualdades sociais (art. 3º, III), além de afronta ao direito fundamental à isonomia (art. 5º, caput). A ação submetida à análise desta Suprema Corte aduz a inconstitucionalidade de restrições impostas ao direito fundamental à gratuidade e, por consequência, ao acesso à Justiça, perante a jurisdição trabalhista. As situações em que as restrições foram impostas são as seguintes: a) pagamento pela parte sucumbente no objeto da perícia de honorários periciais, no caso em que, mesmo sendo beneficiário da gratuidade, tenha obtido em juízo, em qualquer processo, créditos capazes de suportar a referida despesa; b) pagamento pela parte sucumbente no feito de honorários de sucumbência, no caso em que, mesmo sendo beneficiário da gratuidade, tenha obtido em juízo, em qualquer processo, créditos capazes de suportar a referida despesa; e c) pagamento de custas processuais, no caso em que, mesmo sendo beneficiário da gratuidade, não compareça à audiência sem motivo legalmente justificável. Verifica-se, portanto, que o legislador ordinário, avaliando o âmbito de proteção do direito fundamental à gratuidade da Justiça, confrontou-o com outros bens jurídicos que reputou relevantes (notadamente a economia para os cofres da União e a eficiência da prestação jurisdicional) e impôs condições específicas para o seu exercício por parte dos litigantes perante a Justiça do Trabalho. Para avaliar se as restrições impostas afrontam, ou não, as normas constitucionais indigitadas, bem como se constituem restrições 2 Cópia ADI 5766 / DF inconstitucionais aos próprios direitos fundamentais à gratuidade e ao acesso à Justiça, torna-se necessário partir da literalidade das garantias fundamentais em discussão: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (…) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. A proteção constitucional ao acesso à Justiça e à gratuidade do serviços judiciários também encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente da Segunda Turma, que associa tais garantias ao direito de ter direitos, reafirmando que restrições indevidas a estas garantias institucionais podem converter as liberdades e demais direitos fundamentais por elas protegidos em proclamações inúteis e promessas vãs. E M E N T A: DEFENSORIA PÚBLICA – DIREITO DAS PESSOAS NECESSITADAS AO ATENDIMENTO INTEGRAL, NA COMARCA EM QUE RESIDEM, PELA DEFENSORIA PÚBLICA – PRERROGATIVA FUNDAMENTAL COMPROMETIDA POR RAZÕES ADMINISTRATIVAS QUE IMPÕEM, ÀS PESSOAS CARENTES, NO CASO, A NECESSIDADE DE CUSTOSO DESLOCAMENTO PARA COMARCA PRÓXIMA ONDE A DEFENSORIA
PÚBLICA SE ACHA MAIS BEM ESTRUTURADA – ÔNUS FINANCEIRO, RESULTANTE DESSE DESLOCAMENTO, QUE NÃO PODE, NEM DEVE, SER SUPORTADO PELA POPULAÇÃO DESASSISTIDA – IMPRESCINDIBILIDADE DE O ESTADO PROVER A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL COM MELHOR ESTRUTURA ADMINISTRATIVA – MEDIDA QUE SE IMPÕE PARA CONFERIR EFETIVIDADE À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL INSCRITA NO ART. 5º, INCISO LXXIV, DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA -OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL – O RECONHECIMENTO,EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO “DIREITO A TER DIREITOS”COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS,LIBERDADES E GARANTIAS – INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) (…) EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – DEFENSORIA PÚBLICA – IMPLANTAÇÃO – OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL – O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO “DIREITO A TER DIREITOS” COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS – INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) – LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO 5 Cópia ADI 5766 / DF ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES – A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – “THEMA DECIDENDUM” QUE SE RESTRINGE AO PLEITO DEDUZIDO NA INICIAL, CUJO OBJETO CONSISTE, UNICAMENTE, na “criação, implantação e estruturação da Defensoria Pública da Comarca de Apucarana” – RECURSO DE AGRAVO PROVIDO, EM PARTE. (AI 598.212/PR, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 24.04.2014). Em artigo doutrinário sobre o direito fundamental à gratuidade da Justiça no Brasil, Peter Messitte, jurista norte-americano, narra a história da assistência jurídica gratuita no Brasil, especialmente evidenciando a legislação e os
programas relacionados a esse direito de inegável importância para o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. (MESSITTE, Peter. Assistência Judiciária no Brasil: uma pequena história. In Revista da Faculdade de Direito da UFMG, p. 126-150.) Desde a Constituição de 1934, o direito à gratuidade da justiça é reconhecido como um direito de âmbito constitucional, fazendo parte do regime de garantias e direitos essenciais para a vida política e social brasileira. Com exceção da Constituição de 1937, todos os textos constitucionais posteriores reconheceram a importância de tal prerrogativa aos hipossuficientes econômicos com a finalidade de garantir-lhes o pleno acesso à Justiça. (MESSITTE, Peter. Assistência Judiciária no Brasil: uma pequena história. In Revista da Faculdade de Direito da UFMG, p. 135-138.) A Lei 1.060/1950 regulamentou o direito à gratuidade da Justiça no plano infraconstitucional, consolidando as diversas normas sobre assistência jurídica gratuita, em seu sentido mais amplo. Esta referida lei, que foi parcialmente substituída por disposições semelhantes do Código de Processo Civil de 2015, estabelece os requisitos essenciais para o pleno exercício do direito fundamental por ela regulamentado, tendo sido recepcionada pelas Constituições que lhe sucederam. Não se pode deixar de ressaltar que a gratuidade da Justiça apresenta-se como um pressuposto para o exercício do direito fundamental ao acesso à Justiça. Nas clássicas lições de Mauro Cappelletti: O movimento para acesso à Justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais, ou seja, para a efetividade da igualdade. Nesta análise comparativa do movimento de acesso à Justiça, a investigação nos mostra três formas principais, três ramos principais que invadem número crescente de Estados contemporâneos. (…) (CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. In Revista do Ministério Público Nova Fase, Porto Alegre, v. 1, n. 18, p. 8-26, 1985, p. 9) Dos obstáculos, que comumente são indicados ao acesso à Justiça, os de ordem econômica costumam ser os primeiros e mais evidentes. Considerando que os custos da litigação perante o Poder Judiciário são muito altos, e que a jurisdição cível é bastante onerosa para os cidadãos em geral, verifica-se que há um afastamento significativo das classes economicamente mais frágeis do acesso à Justiça institucionalizada. Ainda as lições de Mauro Cappelletti merecem ser aqui reproduzidas: (…) O obstáculo causado pela pobreza, sobretudo. Pobreza econômica do indivíduo e ainda do grupo, e da população, com todas as trágicas consequências da pobreza econômica, a qual termina por ser, também, pobreza cultural, social e jurídica. Obstáculos, igualmente, resultantes da complexidade do sistema jurídico, da distância do governante em relação ao governado, dos abusos que exigem remédio jurisdicional, abusos individuais mas sempre mais abusos dos centros de poder econômico e político, no confronto de sujeitos que, amiúde, não dispõem de instrumentos válidos de proteção. 7 Cópia ADI 5766 / DF Daí o fenômeno central dos estudos de sociologia e psicologia social, o fenômeno do sentimento de alienação do cidadão frente aos obstáculos institucionais e legais. (CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. In Revista do Ministério Público Nova Fase, Porto Alegre, v. 1, n. 18, p. 8-26, 1985, p. 15)
Além da Constituição da República, o direito fundamental de acesso à Justiça também é protegido por normas internacionais, notadamente pelo artigo 8º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que assim dispõe: Art. 8º Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza. Trata-se, indubitavelmente, de garantia fundamental cuja previsão em normas internacionais indica sua dúplice eficácia em nosso ordenamento jurídicoconstitucional, a reforçar, de forma contundente, a proteção ao direito fundamental à gratuidade da Justiça. É preciso reconhecer, também, a relação da gratuidade da Justiça e, consequentemente, do acesso à Justiça, com a isonomia. A desigualdade social gerada pelas dificuldades de acesso isonômico à educação, mercado de trabalho, saúde, dentre outros direitos de cunho econômico, social e cultural, impõe que seja reforçado o âmbito de proteção do direito que garante outros direitos, especialmente a isonomia. A restrição, no âmbito trabalhista, das situações em que o trabalhador terá acesso aos benefícios da gratuidade da justiça, pode conter em si a aniquilação do único caminho de que dispõem esses cidadãos para verem garantidos seus direitos sociais trabalhistas. A defesa em juízo de direitos fundamentais que não foram espontaneamente cumpridos ao longo da vigência dos respectivos contratos de trabalho, em muitas situações, depende da dispensa inicial e definitiva das custas do processo e despesas daí decorrentes, sob pena de não ser viável a defesa dos interesses legítimos dos trabalhadores. E, nesse contexto, a Lei 13.467/2017 atualizou, no âmbito da chamada reforma trabalhista, o modelo de gratuidade da Justiça Laboral, impondo condições restritivas ao exercício desse direito por parte dos litigantes trabalhadores. Ainda que sejam consideradas adequadas, necessárias e razoáveis as restrições impostas ao âmbito de proteção dos direitos fundamentais à gratuidade e acesso à Justiça pelo legislador ordinário, duvidosa apresenta-se a sua constitucionalidade em concreto, ou seja, aquela aferida diante das diversas e possíveis situações da realidade, em que se vislumbra a consequência de esvaziamento do interesse dos trabalhadores, que na condição de hipossuficientes econômicos, não terão como demandar na Justiça Trabalhista, em virtude do receio de que suas demandas, ainda que vencedoras, retornem-lhes muito pouco do valor econômico efetivamente perseguido e, eventualmente, devido. É preciso restabelecer a integralidade do direito fundamental de acesso gratuito à Justiça Trabalhista, especialmente pelo fato de que, sem a possibilidade do seu pleno exercício por parte dos trabalhadores, é muito provável que estes cidadãos não reúnam as condições mínimas necessárias para reivindicar seus direitos perante esta Justiça Especializada. Assim sendo, impõe-se, nesse contexto, uma interpretação que garanta a máxima efetividade desse direito fundamental, sob pena de esvaziar-se, por meio de sucessivas restrições, ele próprio e todos os demais direitos por ele assegurados.
Quando se está a tratar de restrições legislativas impostas a garantias fundamentais, como é o caso do benefício da gratuidade da Justiça e, como consequência, do próprio acesso à Justiça, o risco de violação em cascata de direitos fundamentais é iminente e real, pois não se está a resguardar apenas o âmbito de proteção desses direitos fundamentais em si, mas de todo um sistema jurídico-constitucional de direitos fundamentais deles dependente. Mesmo que os interesses contrapostos a justificar as restrições impostas pela legislação ora impugnada sejam assegurar uma maior responsabilidade e um maior compromisso com a litigância para a defesa dos direitos sociais trabalhistas, verifica-se, a partir de tais restrições, uma possibilidade real de negar-se direitos fundamentais dos trabalhadores pela imposição de barreiras que tornam inacessíveis os meios de reivindicação judicial de direitos, o que não se pode admitir no contexto de um Estado Democrático de Direito. O desrespeito das relações contratuais, no ambiente laboral, exige por parte do legislador ordinário que sejam facilitados, e, não, dificultados, os meios legalmente reconhecidos para que os trabalhadores possam ver garantidos os seus direitos fundamentais de origem trabalhista. O benefício da gratuidade da Justiça é uma dessas garantias fundamentais, cuja finalidade precípua foi, na linha das constituições brasileiras anteriores, dar máxima efetividade ao direito fundamental de acesso à Justiça por parte dos titulares de direitos fundamentais que não estejam em condições de arcar com os custos financeiros de uma demanda judicial. O conteúdo mesmo do direito à gratuidade da Justiça, cujos requisitos essenciais para o seu exercício são aferidos, há décadas, na forma da legislação de regência (Lei 1.060/1950 e, atualmente, c/c Lei 13.105/2015), impõe-se, inclusive perante o legislador infraconstitucional, como um direito fundamental da parte que não tem recursos para custear uma demanda judicial. Nas lições de Nelson Nery Júnior: “(…) Se a lei, atendendo ao preceito constitucional, permite o acesso do pobre à Justiça, como poderia fazer com que, na eventualidade de perder a ação, tivesse que arcar com os honorários advocatícios da parte contrária? Seria, a nosso juízo, vedar o acesso ao Judiciário por via transversa porque, 10 Cópia ADI 5766 / DF pendente essa espada de Dâmocles sobre a cabeça do litigante pobre, jamais iria ele querer promover qualquer ação judicial para a garantia de um direito ameaçado ou violado. (NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. São Paulo : RT, 2013, p.127) Importante ressaltar que não há inconstitucionalidade no caput do artigo 790-B da CLT, com a redação da Lei 13.467/2017, quando admite a possibilidade de imputação de responsabilidade ao trabalhador sucumbente, pois admitir a imputação é ato distinto de tornar imediatamente exigível tal obrigação do beneficiário da justiça gratuita. Se cessadas as condições que deu ao trabalhador o direito ao beneficio da gratuidade da justiça, admite-se a cobrança das custas e despesas processuais. Não se apresentam consentâneas com os princípios fundamentais da Constituição de 1988 as normas que autorizam a utilização de créditos, trabalhistas ou de outra natureza, obtidos em virtude do ajuizamento de um processo perante o Poder Judiciário, uma vez que este fato – sucesso em ação ajuizada perante o Poder Judiciário – não tem o condão de modificar, por si só, a condição de miserabilidade jurídica do trabalhador. É importante consignar que a mera existência de créditos judiciais, obtidos em processos trabalhistas, ou de outra natureza, não é suficiente para afastar a situação de pobreza em que se
encontrava a parte autora, no momento em que foram reconhecidas as condições para o exercício do seu direito fundamental à gratuidade da Justiça. Ora, as normas impugnadas que impõem o pagamento de despesas processuais, independentemente da declaração oficial da perda da condição de hipossuficiência econômica, afrontam o próprio direito à gratuidade da Justiça e, consequentemente, o próprio direito ao acesso à Justiça. Da mesma forma, importante afirmar que o benefício da gratuidade da Justiça não constitui isenção absoluta de custas e outras despesas processuais, mas, sim, desobrigação de pagá-las enquanto perdurar o estado de hipossuficiência econômica propulsor do reconhecimento e concessão das prerrogativas inerentes a este direito fundamental (art. 5º, LXXIV, da CRFB). É certo que não se pode impedir o trabalhador, ainda que desidioso em outro processo trabalhista, quando comprovada a sua hipossuficiência econômica, de ajuizar outra demanda sem o pagamento das custas processuais. O direito fundamental à gratuidade da Justiça, notadamente atrelado ao direito fundamental de acesso à Justiça, não admite restrições relacionadas à conduta do trabalhador em outro processo trabalhista, sob pena de esvaziamento de seu âmbito de proteção constitucional. A conformação restritiva imposta pelas normas ora impugnadas afronta não apenas o próprio direito fundamental à gratuidade, mas também, ainda que de forma mediata, os direitos que esta garantia fundamental protege, o que se apresenta mais concreto com a invocação do direito fundamental ao acesso à Justiça e dos direitos sociais trabalhistas, eventualmente, desrespeitados nas relações contratuais respectivas. O direito fundamental à gratuidade da Justiça encontra-se amparado em elementos fundamentais da identidade da Constituição de 1988, dentre eles aqueles que visam a conformar e concretizar os fundamentos da República relacionados à cidadania (art. 1º, III, da CRFB), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB), bem como os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I , da CRFB) e de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, da CRFB). Apresenta-se relevante, nesse contexto, aqui dizer expressamente que a gratuidade da Justiça, especialmente no âmbito da Justiça Laboral, concretiza uma paridade de condições, propiciando às partes em litígio as mesmas possibilidades e chances de atuarem e estarem sujeitas a uma igualdade de situações processuais. É a conformação específica do princípio da isonomia no âmbito do devido processo legal. As limitações impostas pela Lei 13.467/2017 afrontam a consecução dos objetivos e desnaturam os fundamentos da Constituição da República de 1988, pois esvaziam direitos fundamentais essenciais dos trabalhadores, exatamente, no âmbito das garantias institucionais necessárias para que lhes seja franqueado o acesso à Justiça, propulsor da busca de seus direitos fundamentais sociais, especialmente os trabalhistas. Assim sendo, o pedido da presente ação direta de inconstitucionalidade deve ser julgado procedente. É como voto.” No caso concreto, ainda que não tenha sido determinado o pagamento desde já dos honorários
sucumbenciais – a aplicação do art. 791-A, § 4º da CLT, na parte que permite a dedução dos créditos do autor, foi relegada à fase de liquidação – o comando repercute sob a forma de violação aos efeitos da plena concessão do benefício da assistência judiciária na medida em que, traduz possibilidade de dedução de custos do processo, de crédito de natureza alimentar e, nessa premissa, deve ser rechaçado. Diante dos fundamentos expostos, acolho a arguição de inconstitucionalidade da expressão “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa”, constante do § 4º do art. 791-A da CLT, com redação da Lei 13.467 de 13.07.2017, e, na forma do disposto no art. 143 do Regimento Interno deste Tribunal, assim como dos arts. 948 e 949 do CPC, submeter a apreciação do Tribunal Pleno, restando sobrestado o julgamento dos demais itens do recurso. BEATRIZ RENCK Relator VOTOS PARTICIPARAM DO JULGAMENTO: DESEMBARGADORA BEATRIZ RENCK (RELATORA) DESEMBARGADORA MARIA CRISTINA SCHAAN FERREIRA DESEMBARGADOR RAUL ZORATTO SANVICENTE |
|
Fonte - http://revisaotrabalhista.net.br |
|
|